Rural

Na ruralidade de daquele senhor já se passavam anos e anos, e tendo em vista as portas já desgastadas daquele imenso casarão, não era difícil imaginar que uma confusão mental lhe traria a dor da dúvida.

Já não sabia a porta correta. Nem ao menos encontrava-se, estava perdido a tempos e sem reação. Em meio a corredores monocromáticos com pessoas que iam e voltavam apressadas sem olhar umas às outras. O estado de inversão das coisas abstratas transtornava sua mente de tempos em tempos. Até mesmo o relógio pendurado na parte já não tinha ponteiros. 

No seu ambiente rural encontrava o conforto, mas seu conforto era coisa de inverno. Inverso. Seu conforto já não era afagável... Era um conforto em dores. Uma sensação de dormência. A permanência do corpo talvez fosse o que mais lhe doía de fato. Os olhos vagos já não enxergavam as coisas que estavam logo à sua frente, mas conseguia enxergar mais adiante um campo. 

Ahhh sim o rural, lembro me disso perfeitamente, era um campo extenso. Com uma relva que ia dar quase no mar. Quase, por que antes de tocar as águas frias e salgadas do mar, era toda coberta de areia, pequenos fragmentos de conchas e fósseis de muitos anos atrás, dizia meu avô todas as tardes ao admirarmos o por do sol. Mas já não me lembro bem do meu avô, mas lembro dele dizendo que até mesmo coco de peixes estavam presentes na areia da praia. Via então aquele imenso campo e mais a frente enxergava também uma criança que brincava com uma bola, e fazia do varal um baliza, tão grande que era quase impossível de errar, e mesmo assim por vezes a bola passava muito distante do varal. Mas aquela criança parecia não se importar com aquilo, e era quase possível ouvi-lo gritar mesmo alto. GOL!!! GOL!!! E tudo fazia lembrar do silêncio suspenso pela brisa úmida do mar. 

Àquela altura lágrimas já escorriam no meu rosto e quis me aproximar para devolver a bola àquele menino. À minha frente uma cerca feita de arames farpados <não muito distante>, mas me impedia o contato com aquela relva, a bola, a criança. Lembro me bem de tentar passar a cerca, mas então parei para admirar aquele varal, e percebi a roupa ainda molhada pois não se mexia tanto ao vento, como mexiam as árvores ali em volta. Percebi também algo a puxar me as mãos. Já não era uma criança, tinha os olhos cansados. Como quem há tempos, venera o infinito.

No corredor pessoas agora corriam por todas direções, por diversas dimensões. Como se cada uma daquelas antigas portas dessem acesso à diferentes formas de tempo e espaço. Diferentes formas do meu precioso rural. Sinto então uma picada e em questão de segundos vejo novamente o rural, oculto nas lembranças que a há tempos o presente inconstante das coisas insistiam e me tirar. Tão logo volto ao corredor, e vejo uma senhora do outro lado daquele mesmo corredor. Já não ouvia bem, talvez o estado de dormência tenha atingido meu ouvidos, ela parecia chamar a mim, me pareceu desesperada. Eu pensava... De onde teria vindo aquela picada? Talvez fosse o arame farpado, ou até mesmo uma cobra, o ambiente rural tem dessas coisas. 

Busquei então desesperadamente um contato visual com a criança que antes brincava com sua bola, ali, entre o abismo farpado e uns poucos metros de relva. Mais uma picada! Já não sei o que acontece, a relva agora se foi, vejo ainda a bola ou algo que me pareça uma bola, mas já não enxergo o seu contorno, apenas uma mancha circular negra envolto por uma massa esbranquiçada, fruto da ferrugem dos meus pensamentos abstratos.

Uma nova picada! E a sensação de dormência toma também a minha visão. Já não enxergo, o que eram manchas agora dispersam na imensidão das coisas ocultas. Mas ainda consigo sentir meu corpo, arrepios, o vento. O aspecto úmido da brisa me remete novamente ao rural. 

Era possível sentir o cheiro de relva molhada, e o ar... O ar tem um gosto de maresia, levemente espesso, salgado, grudento. Ahh o rural, a verdade é que já não tenho mais idéia de quanto tempo estou aqui e o medo de voltar me paralisa. Outra picada! Essa ainda mais profunda do que as demais, na minha mente, agora, nem mesmo a confusão se faz mais presente... Outra picada.